terça-feira, 5 de abril de 2011

A mãe de todos

Nelson Rodrigues descobriu o sexo olhando pelas fechaduras das portas, assim
como tantos outros meninos descobriram toda uma vida. Do mesmo jeito, foi assim
que eu descobri a presença inquieta da morte. Quando menino, uma gritaria de rua
me empurrou da cama antes mesmo que o sol desse sua cara. Desci as escadas
sem saber por onde passavam meus pés. Dei-me com a porta trancada por todas
as chaves e a única coisa que soube foi olhar pelo buraco da fechadura. Lá estava o
corpo da minha infância, banhado a sangue, a gritos, a choros e desespero. Era Joana
da casa da frente, meu platonismo dos oito anos. Com Joana morta, não exprimi
nenhuma curiosidade. Não esbanjei nenhum sentimento senão a estranha empatia
que criei por essa escuridão.

E então veio a guerra. E lá, mais uma vez estava minha estranha e antiga amiga
dando as caras na fechadura da minha porta. Ela usava armas e colocava máscaras
nos rostos dos homens com a única finalidade de encenar. Foi dançando essa valsa
dramática que alguns sobreviveram. Olhando em alguns olhos, víamos a semi-vida
que lá se encontrava. Uma vida que estava pela metade pois alguns de seus órgãos
como o orgulho, a fome, a sede e a esperança tinham ido embora. Eu vi, não mais
pelo buraco da fechadura, mas pelos olhos do mundo, que a morte construiu o meu
país e a vida.

Hoje os nossos tempos mudaram. São tempos de carnaval, de sexo explícito, de
botox, de biocombustível, de hormônios, de e-mails. Não há mais a guerra e, como
órfãos, esqueceram a miséria e as doenças na casa desse fantasma. Mas há, nessa
passagem, a presença da morte mais viva do que nunca. É ela quem anda lado a lado
conosco, que nos faz acordar, cair da cama, pular o muro, dormir na estrada, tomar
uísque, fumar um cigarro corrosivo e ter um filho para que possamos ensiná-lo
como embalar a sua presença cotidiana e quase imperceptível. Mais do que Deus, é
ela a onipresente. A morte é a grande parideira da vida.